Vila de Rei com Val de Cavalos

Os romanos construíam as cidades e demais lugares de habitação levando sempre em linha de conta uma coisa que se designa por “espírito do lugar”. Isto é: perscrutavam antecipadamente as coordenadas dos ventos e a natureza dos sítios que eram escolhidos criteriosamente. Pode-se dizer que eles construíam com sentido de permanência. Daí terem resistido até hoje tantos caminhos (vias) e serem ainda tão admiráveis as ruínas que existem dos grandes edifícios que eles legaram à posteridade, assim como sítios urbanos (civitas) e rurais (villae). Mais tarde, recuperaram-se essas lições de bem construir para o futuro e para a comodidade e bem-estar dos povos, com o relançamento dos sistemas urbanísticos e infra-estruturas clássicas. Já durante a idade média, por outras razões, a construção privilegiou a vizinhança das vias de comunicação, ou seja, os nossos mais directos antepassados construíam perto dos caminhos e dos rios.

Tendo isso em consideração, verifica-se também que os novos aldeamentos depois da reconquista lançaram os seus alicerces na proximidade das ruínas dos antigos lugares romanos. Tomemos como exemplo Conímbriga, Coimbra e Condeixa. Depois de abandonada Conímbriga vieram erguer-se dum lado e do outro dos seus pontos cardeais a famosa Coimbra e Condeixa disputando-se estas, entre si, a primazia, sobre a antiga povoação romana ou seja: qual delas seria a mais directa herdeira daquele passado glorioso.

É interessante descobrir – depois de o ter investigado – que tudo o que fica dito se encaixa naquilo que pretendi transmitir neste livro. No nosso pequeno caso, que serve de tema ao livro que aqui se apresenta, acha-se, na base, uma situação semelhante, sob este ponto de vista. Sustento nele a tese da diferença entre Trava e Vale de Cavalos, ao mesmo tempo que pretendo deixar, sem fingidas pretensões, a pista para aquilo que não representa qualquer dúvida, para mim, que é a antiguidade romana de Vila de Rei. Tanto Vila de Rei como Trava foram sítios de ocupação romana – qualquer que tenha sido o período em que ela aconteceu – enquanto posso assegurar, sem margem de erro, que Vale de Cavalos nasceu entre as duas sem coincidir, em absoluto, com nenhuma delas.

A reunião que se veio a constituir em Vale de Cavalos, com o passar do tempo, enquanto pólo aglutinador de ambas as designações, acarretando consigo os territórios que lhes são afins, só se veio a verificar por influência eclesiástica, desde que se erigiu nela a igreja paroquial, como sítio de convergência dos “fregueses”, designação popular e antiga para o que chamamos paroquianos. Por outro lado, aproveitando esta realidade, a reforma liberal impôs uma nova rede administrativa ao país que, na maior parte dos casos e depois de muitas discussões, assentou sobre as divisões criadas pelas dioceses naqueles tempos recuados. Foi assim que Vale de Cavalos se ergueu como cabeça de freguesia, congregando nela, tanto os casais da charneca como as quintas ou casais do campo, este sim, chamado da Trava.

Aproveito para dizer que também o campo da Trava foi alvo de criteriosa pesquisa documental e com grande expectativa aguardo que um dia venha a público para completar o que fica escrito em Vila de Rei com Val de Cavalos.

Posto isto, deixo aos leitores interessados as pistas documentais, sugerindo aos que queiram prosseguir com a investigação no futuro – sobretudo arqueológica – que as leiam e as comentem, pretendendo tão-somente favorecer, com isso, o melhor e mais vasto conhecimento e divulgação do património de riba Tejo.

Não quero também deixar de, em breves palavras, homenagear o nome de Pero Esteves do Cazal, um dos primeiros senhores destes domínios que chegou ao nosso conhecimento através da documentação – embora, não, certamente, o primeiro – para com ele celebrar a memória de um homem empreendedor que desbravou as matas e fez a terra produzir os seus frutos, numa época de grande fomento económico e não menos também de cultura e bem-estar social, como assinaladamente garantem, os nossos historiadores. Estou a referir-me aos reinados de D. Afonso III e de D. Dinis, sem esquecer períodos intercalares nos reinados de D. Afonso IV a D. Fernando. Demonstro também que a terra conheceu a reocupação pós-reconquista certamente com o grande rei D. Sancho I e, desse tempo, seriam os primeiros donos cristãos, efectivos, desta terra. As dificuldades que se seguiram nos anos posteriores teriam causado alguma insegurança e provocado a descontinuidade da ocupação. Garantidamente, desde os últimos decénios do século XIII em diante, renasceram estas terras e nasceu a povoação de Vale de Cavalos.

Igualmente, estou convencida pelo que me foi possível averiguar, que Vila de Rei acompanhou desde o seu nascimento, em termos ocupacionais, a Chamusca e Ulme, muito embora quer uma quer outra tenham evoluído, pelas razões que se contam no livro, em sentido mais grandioso, enquanto sedes de poder. Ficamos no percurso a conhecer os nomes daqueles que aqui estabeleceram a senhoria, rivalizando na importância e condição com os dos referidos lugares vizinhos. – Que importância é que tem isso? Dirá alguém. Pouca ou nenhuma, provavelmente, no entender de alguns. Aceito que se pense assim, visto que para reconhecer o valor do que quer que seja, em primeiro lugar, é preciso tempo para amar o objecto do nosso interesse. Mas também sei que ninguém pode amar o que não conhece. Por isso, seguindo exemplos raros, dispus-me a pesquisar para conhecer e amar melhor esta terra onde nasci e nasceram muitos dos meus antepassados – e dos de muitos dos presentes, se não de todos. Sem conhecer não é possível amar. E permitam-me que lembre Dante, o grande poeta, precursor de uma nova idade na arte da escrita. Teria Dante escrito a sua “Divina Comédia” se não tivesse conhecido Beatriz?

Adquiridas, felizmente, algumas garantias capitais à boa convivência social é preciso avançar – julgo eu – para o conhecimento mais profundo das coisas da nossa terra (refiro-me ao concelho num todo), passando a advogar com mais insistência a sua conservação, tendo em vista a preservação da sua identidade, feita não apenas de folclore, mas com respeito pela sua idiossincrasia. É nesta que reside a sua alma. Sim, porque como bem sabiam os romanos, as terras e as casas têm espírito e na sua interacção com o das pessoas reside o bem-estar e a alegria das gentes que aí vivem.

A semana da Ascensão enquadra-se neste espírito. A manutenção destas tradições – mais antigas do que o nosso saber – é um legado patrimonial de pais para filhos. A este propósito cabe aqui recordar que a palavra património é da mesma família de pai e de pátria (do latim pater). Ora, quem é que não ama o seu pai ou a sua mãe? Lá diz o ditado popular, transformado em cantiga: Quem dera ter uma mãe / nem que ela fosse uma silva / ainda que ela arranhasse / sempre eu era a sua filha. Por isso, coitados dos que não têm terra ou lembrança dela, berço primordial de cada um de nós.

Depois de terminar este trabalho, senti o mesmo que o grande Camões, sem saber o que fazer com ele, como o grande épico com o imortal Lusíadas – perdoem-me a comparação que não tem nada a ver com a dimensão da obra, mas sim com os sentimentos do coração. Foi, então, depois de alguns passeios à volta do “meu quintal” – como se exprimiu Garrett – que abri a alma desanimada ao querido amigo José Cumbre. É justo dizê-lo pois foi ele que, em boa hora, me recomendou que viesse ter com a “câmara” já que ele acreditava que era o sítio indicado para eu apresentar o que tinha aprendido. De outras pessoas a quem estou agradecida fica o registo no lugar apropriado. Da boa vontade do senhor presidente – cujo acolhimento é muito merecido elogiar da minha parte – ganhei o encorajamento que faltava para avançar para o editor.

Do empenho deste último está à vista a prova: um excelente trabalho de forma, desejando, sinceramente, que o conteúdo lhe corresponda e não desiluda ninguém que o tenha em mãos. Cabe-lhe aqui o meu agradecimento, enquanto autora, pelo resultado final, não devendo deixar de estender o encarecimento ao mérito de Sara Silva, a designer que fez o tratamento do texto e da imagem, com grande profissionalismo. Neste aspecto, como em muitos outros, assiste-se à subida da bitola da qualidade da “província” que não desmerece o que se faz na cidade.

Noutros campos, não menos interessantes, embora eu não habite em permanência na região, quero estar segura, que o concelho há-de aproveitar bem as sinergias – como se diz agora – para não deixar morrer a alma que a tornou famosa.

Regresso ao princípio, acrescentando que fui recebida com a hospitalidade que caracteriza a franqueza ribatejana, mas também devo dizer que foi o amor que me moveu. Sem amor e sem a garra da paixão nada teria feito, visto que, sem mentir, desejei conhecer melhor esta terra, por amor a ela, terra onde vi a luz do dia pela primeira vez e isso fiz, investindo muito de mim, em tempo e em esforço. Fi-lo consciente de que valia a pena, qualquer que fosse ou seja a recepção que venha a ter, pois há coisas que se apreciam melhor com o andar da vida e eu acredito que outros virão e hão-de ficar cativados por este trabalho, por menor que seja como contributo para algo maior – tal como eu fico sempre, quando consulto os livros antigos. E porque um discurso é uma forma de oração, terminarei como quem a faz, expressando o meu muito obrigada e formulando um voto, com o qual sintetizo o que me vai no pensamento: que a prosperidade e a paz sejam com todos aqueles que acreditam que vale a pena!

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